reflexões cinematográficas

O que seria da perfeição se ela não fosse moldada pela singularidade de suas imperfeições que, de tão únicas, fazem-na perfeita?

Algumas sessões atrás, no Cineclube Cascavel, tive a oportunidade de ver o filme Aboio, de Marília Rocha, que ajudou a fervilhar alguns pensamentos que já pairavam em minha cabeça sobre documentários. Mas, antes de começar, deixo claro que este texto não é uma crítica ao filme, e sim os pensamentos de um espectador.

cine cascavel

Os filmes que gosto provocam um turbilhão em mim quando acabam, fico instigado e inspirado, procurando uma forma de digerir aquelas emoções, pois para mim cinema é emoção, é sentimento, imaginação, catarse… Porém, quando se trata de documentário, temos ali um assunto real sendo abordado – mesmo em documentários mais fantasiosos e ensaísticos tem-se a verdade do universo retratado.

Mas em se tratando de um filme, o que é real? Nos primórdios da fotografia a discussão girava em torno dela ser ou não uma forma de arte, sendo motivos pontuais dos que não a consideravam como tal: o retrato da realidade e a reprodutibilidade mecânica. Até que no início do século XX alguém indagou: como a fotografia poderia ser um retrato da realidade se, para início de discussão, ela não retratava cores?

Desde então e até hoje a discussão acerca da realidade nas imagens fotográficas acontece, e não serei eu a dar a palavra final. Martine Joly, autora francesa de livros sobre a análise da imagem, em palestra na Universidade Estadual de Goiás em 2008, concluiu uma conversa dizendo que devido a todos os mecanismos de manipulação de imagem (dos analógicos aos digitais) é impossível se afirmar a veracidade de qualquer delas.

Boris Kossoy em “Realidades e ficções na trama fotográfica”, faz uma abordagem levando em consideração o espectador na construção do sentido da imagem. Ou seja, o sentido da obra depende da bagagem cultural do espectador e o conhecimento dele acerca da realidade retratada, de modo que a imagem pode conter uma realidade para cada espectador. Então a imagem é a realidade ou a representação da realidade?

Ainda que hoje (pasmem) algumas pessoas não aceitem a fotografia como arte, foram os seus “defeitos” em reproduzir a realidade que lhe conferiram esse status, e consequentemente, ela sofreu várias experimentações nas mãos de seus artistas, demonstrando por a+b que são sempre capazes de tocar o âmago, mesmo em tempos de overdose de imagens. E, é claro, nosso amado cinema surgiu da fotografia.

Aboio trabalha de forma muito tocante esses “defeitos” da fotografia, que na verdade são recursos visuais próprios da linguagem, para imprimir uma visão tão singular sobre o assunto abordado, que mesmo se não houvesse a presença da voz dos entrevistadores, seria possível a diferenciação entre quem está observando, e no caso fazendo o filme, e o objeto filmado. A utilização de imagens em super8, que quase sempre associamos a imagens antigas, em uníssono com a tradição do aboio, mais antiga que o próprio cinema, o modo fílmico (no sentido universal, sem gêneros) que o som foi usado, e a poesia que corre solta durante todo o filme me tocaram. Como disse a Marcela Borela ao fim da mesma sessão “a poesia é o trunfo de Marília”.

aboio divulgacao3
still frame – aboio

Penso ligeiramente diferente, embora concorde que a poesia se sobressaiu neste trabalho específico, mas acho que o diferencial de Marília foi ter feito uma obra de arte independentemente de gênero cinematográfico. E quando digo isso, quero exprimir meu pensamento de que a partir do momento em que se decide por fazê-lo, o assunto abordado fica em segundo plano em relação ao conjunto de elementos que formarão a obra final, um filme. Antes de falar sobre qualquer que seja seu tema, o realizador deve ter em mente os recursos que constituem um filme sem se prender às amarras de cada estilo, fazendo com que ele respire como obra, tenha sua curva dramática, use o som mais corajosamente (muitas pessoas, aparentemente, ainda não perceberam que o som é no mínimo 50% da obra, mesmo ausente) de modo que ele acrescente à composição geral, e ainda desfrutar, quando julgar pertinente, da capacidade do cinema de incorporar qualquer outra forma de arte.

É claro que existem inúmeras situações documentais em que nem áudio e nem imagem são captadas com grande qualidade, mas mesmo assim, quando se está na ilha de edição deve-se organizar o material de forma cinematográfica. Um bom exemplo disso é o filme Burma VJ, que me parece (levianamente falando) um documentário ativista mesclado ao ensaísta. Nesta obra é possível se perceber a organização dos fatos de modo evolutivo. Também gostei desse filme por tratar de uma situação política muito peculiar, e mais ainda por fazer uso de um elemento cinematográfico predominantemente usado em filmes ficcionais: uma virada na trama, a quebra da expectativa. Sem contar uma sequência arrepiate de centenas de milhares de pessoas protestando pacificamente em nome da dignidade, humanidade, paz e liberdade. Merece até um friso essa emoção.

O pensamento que tento transmitir aqui é que não basta que o tema seja interessante, alguém que faz um documentário não pode se furtar a dá-lo a atmosfera artística que ele merece e que justifica o rótulo de sétima arte. A verdade dos fatos pode ser contada de inúmeras formas, mas assistir um filme é uma experiência diversas vezes intensa, e essa emoção faz parte da verdade do público, pois naquele momento é a única coisa que ele de fato sentiu na própria pele. Assim sendo, penso que o diretor é responsável por transpor o objeto documentado para a linguagem cinematográfica, não que esta seja engessada, mas que faça jus à grandeza do veículo.

Como é bom ter contato com filmes interessantes(!) e não ficar na dependência da lógica monetária das salas comerciais. O Cineclube Cascavel exibe filmes interessantes, num lugar honesto e de graça! Quem ainda não conhece, vale a pena.

Salve salve os cineclubes e o pensamento livre!!

renatoprado

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3 respostas a reflexões cinematográficas

  1. Luiz Felipe Mundim disse:

    Parabéns pelo texto, Renato.

    Alguns comentários. Pelo que pude entender, quando você fala sobre o caráter poético do filme não ser o que mais se sobressaiu na sua leitura, você quer dizer que os aspectos técnicos que fazem do filme uma obra verdadeiramente cinematográfica é que te chamam à atenção. Entretanto, o bem sucedido caráter poético de Aboio (que a meu ver não significa categorizá-lo em um gênero ou outro) não seria também fruto do conjunto de técnicas, bom encaminhamento das intuições e ideias?

    E pra finalizar, devo dizer que são essas intervenções, participações e vontade de fruir e se apropriar dos filmes de maneira livre e aberta como a sua que alimentam o cineclubismo, e o cinema por suposto.

    Grande abraço!
    Luiz

  2. renatoprado disse:

    obrigado, Luiz.

    Acho que acabamos dizendo a mesma coisa. Eu disse: “embora concorde que a poesia se sobressaiu neste trabalho específico”. Respondendo sua pergunta, concordo que a poesia foi criada pela sábia utilização dos elementos cinematográficos aliados à perspicácia dela(diretora). Adorei o filme.

    abraço!

  3. fabiola disse:

    muito bom seu texto renato, acrescento aa conversa uma linha instigante que li hj: “por meio da camera, as pessoas se tornam clientes ou turistas da realidade” aindasusansontag

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